
Obra de Lewis Caroll completa 150 anos de publicação: toca do coelho permanece como o mundo subterrâneo dos nossos desejos
Ainda que numa outra perspectiva literária, que transita da inocência à sua superação, Wladimir Nabokov é herdeiro de Lewis Carroll, sendo Lolita a imagem em negativo de Alice, refletida no espelho. Embora ambas as imagens sejam estonteantes, Alice nos fascina na medida em que ao lermos Lewis Carroll nos sentimos em paz com a nossa consciência, pelo triunfo do recalque sobre o recalcado; todos que lêem Carroll adentram o mundo mágico de Alice e, com ela, nele se permitem perder sem com isso perder o juízo.
Ao salvaguardar os nossos desejos ocultos, o criador de Alice faz emergir em cada um de nós o desejo de ser companheiro de brincadeiras da menina que descobriu o mundo ao entrar numa toca de coelho; e que ao entrar nela, nos fez conhecer o mundo subterrâneo dos nossos desejos imaginários, a partir de uma perspectiva simbólica. Não foi por menos que Alice descobriu o País das Maravilhas sem que o seu Eu se pulverizasse ou viesse a fazê-la perder a noção de si mesma.
O País de Alice é estonteante, mas não causa repulsa ou horror em quem o visita, conduzido pelas mãos de Alice, através da pena de Carroll. O País das Maravilhas é o delírio de Alice, que por sua vez é o delírio de Carroll, sendo este o imaginário de todos nós refletido no espelho simbólico dos desejos do mundo, que têm uma anterioridade sobre o mundo surreal de Carroll e o mundo imaginário de cada criança ou adulto.
Uma anterioridade que, embora primeva, organiza o que há de mais arcaico no nosso mundo imaginário-pulsional fazendo do ato de sonhar uma cena vivida em estado de vigília, sem com isso nos remeter ou fazer adentrar o mundo da desrazão. Com Carroll é possível, ao invés de sonhar num teatro à porta fechada, fazê-lo a céu aberto, pois ao adormecermos se abrem as cortinas e se desenrola grande parte dos dramas das nossas vidas, sem que saibamos a natureza do texto representado, a procedência específica da montagem do espetáculo, e muito menos quem é o diretor da peça.
Alice é a nossa aventura cotidiana desmedida num mundo de medidas, possibilita-nos a impossibilidade de tudo querermos ser e tudo querermos viver, mesmo tendo que se colocar de ponta-cabeça para descobrir a desordem da ordem do mundo.
Enquanto Alice acaricia o nosso imaginário com uma pluma feita de pena de ganso, embora o faça com a força do estímulo necessário para que, junto com ela, sejamos arrastados a correr atrás do coelho em sua toca alucinante, Lolita mira e atira na nossa consciência com uma espingarda de grosso calibre, ao fazer com que acompanhemos os seus movimentos não de fora para dentro, mas nos remetendo, exatamente, para o olho do furacão situado na mente de Humbert. Trata-se do lugar da força pulsional desmedida, da ultrapassagem dos limites, da transgressão de si mesmo, numa viagem através do mundo dos espelhos que reflete uma imagem única, e aponta em direção a um único caminho: o triunfo do imaginário sobre o simbólico, do gozo sobre o desejo, da perversão do sujeito sobre a perversa ordem coletiva.
Lolita nos faz mais do que devanear, ela nos faz triunfar num mundo em que todo sucesso somente pode ser vivido em forma de fracasso: o fracasso do gozo diante do desejo, da plenitude em face da incompletude, da onipotência individual diante da coerção social expressa em nome do bem-comum. Pelas mãos de Nabokov, que nos introduz nos desejos de Humbert, somos levados a conhecê-la, mas é ela que nos faz conhecer o Humbert que nos habita, mesmo que ele esteja aprisionado feito uma fera enjaulada (no inconsciente) ou domesticado como um bicho de estimação (na consciência).
Para isso, Nabokov rasga a nossa pele e expõe as nervuras dos nossos ossos, sem em nenhum momento ser libertino: simplesmente é honesto com o exercício da sua escrita, escrita pulsante, vibrátil, que não se dissocia de quem a escreve (embora Nabokov não seja Humbert). Escrita que faz emergir uma outra voz, não apenas lá dentro de Nabokov, mas também de dentro de cada um de nós; não a voz sufocada do dia-a-dia que costuma sair de nossas bocas na forma dos miasmas psicológicos e sociais em que nos transformamos e que nos desintegram, quando o nosso propósito é nos manter inteiriços. Tampouco um fiapo de palavra qualquer, que mais nos afasta do que nos aproxima de nós mesmos, e que faz com que as nossas falas sejam vazias.
Lewis Carroll nos revela um mundo estonteante, de ponta-cabeça, o País de Alice, mas para nele adentrarmos não é preciso que plantemos bananeira (tal como na minha infância era chamada a posição de brincar de ponta-cabeça). Nabokov revela um mundo mais do que estonteante, revela um mundo que nos sidera mediante o horror que elicia.
Nele, ninguém pode adentrar sem subverter a si mesmo ao longo de toda leitura da obra em apreço. Subversão temporária de si, é verdade, mas o suficiente para promover uma torção simbólica em quem entra em contato com o livro, para o resto da vida.
Lolita, como foi dito, é a imagem de Alice revelada em negativo no espelho, ou o seu contrário. No mundo da literatura, tal qual no mundo dos espelhos, tudo é uma questão de ótica. Bem que, nesta perspectiva, Wladimir Nabokov poderia ser o coelho e Lewis Carroll, Lolita.